Alves, Manuel Valente (co-autor);
Gomes, Luis Filipe Nazaré (ed. lit.)
- ANATOMIA: arte & ciência,
Lisboa: Althum: Fundação Champalimaud, 2013.
118, [1] p. : muito il. ; 31 cm.
Encadernação editorial com sobrecapa policromada; miolo irrepreensível.
Encadernação editorial com sobrecapa policromada; miolo irrepreensível.
«Os desenhos reproduzidos no presente álbum foram realizados numa época marcada pela explosão modernista, pela escalada tecnológica na medicina, por grandes transformações políticas e sociais. Mas nada disso parece transparecer destes trabalhos escolares, quase todos eles imersos numa beleza incerta, numa quietude melancólica difícil de definir.»
[Do texto de Manuel Valente Alves]
«Não há dúvida que Vilhena dedicou à Anatomia Artística um afecto particular e, entre 1905 e 1938, foi coleccionando de entre as obras dos alunos aquelas que julgou de maior interesse e qualidade, num total de mais de duas mil. O volume que agora se publica ilustra bem a liberdade que concedeu aos seus discípulos e como eles encontraram formas originais de representação que, qualquer que fosse a técnica adoptada, parecem estar animadas de um particular sopro de vida.
A Anatomia, aprendida e cultivada por pintores e escultores através dos séculos, cumpriu com nobreza o mesmo desígnio, na celebração esplendorosa daquele corpo que os teólogos dizem ser a «imago Dei», isto é, a imagem do seu Criador.»
[Do texto de João Lobo Antunes]
Muito bom exemplar.
1ª edição
€48.00
Iva e portes incluídos.
A obra Anatomia. Arte & Ciência, em co-autoria de João Lobo Antunes e Manuel Valente Alves, é a todos os títulos notável, para o que não deixa de contribuir também a luxuosa qualidade gráfica da edição. Nela se reúnem e selecionam algumas dezenas de reproduções de desenhos anatómicos da autoria de estudantes de Belas-Artes, identificados na sua maioria, e todos executados (com uma única exceção) nas quatro primeiras décadas do século XX, embora uma parte não negligenciável deles não se encontre datada. No seu conjunto, o livro restitui à memória pública uma coleção de inestimável valor conservada no Museu de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, sobre a qual desenvolve igualmente uma pesquisa historiográfica até hoje inédita. Com efeito, a originalidade deste estudo, no preciso tema de que trata, se constitui por si só uma mais-valia absoluta, não deixa de consubstanciar, pelo próprio facto dela, uma denúncia do mar de esquecimento, negligência e desmemória crítica e académica a que desde sempre têm estado sujeitos preciosíssimos patrimónios nacionais que nunca entre nós mereceram atenção idêntica à que foi votada noutros países, que costumamos ter por modelares, aos patrimónios que são os deles. A rotura com a inércia, rotura que este livro significa, deverá por isso servir igualmente à muito desejável prossecução de um campo de pesquisa empírica em que ele figura como inspirador e guia.
A coleção foi originalmente reunida pelo médico Henrique de Vilhena, professor de Anatomia Artística na Escola de Belas-Artes de Lisboa entre 1905 e 1938, mas que se distinguiu na história da Medicina Portuguesa sobretudo como fundador da única escola anatómica nacional digna desse nome, que se desenvolveu na então Escola Médico-Cirúrgica da Universidade de Lisboa, onde lecionava, a partir do Instituto de Anatomia por ele criado na sequência da reforma republicana da universidade em 1911 e que designadamente se divulgou através da revista Arquivo de Anatomia e Antropologia. Henrique de Vilhena compôs a coleção com exemplares cedidos pelos estudantes de Belas-Artes que frequentavam as aulas práticas de anatomia artística e que através delas tinham acesso a peças anatómicas preparadas pelos assistentes da Faculdade de Medicina. Não integra este livro uma outra coleção de desenhos anatómicos de Maria Helena Vieira da Silva, aluna de um curso livre de Vilhena em 1929, que permaneceram na posse da pintora e que depois passaram para o espólio da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva e que já tinham sido objeto de várias mostras, a começar com a exposição que Manuel Valente Alves especificamente lhes dedicou em 2011 naquela Fundação, “Gabinete de Anatomia – Arpad, Vieira e os desenhos anatómicos do Museu de Medicina”.
Cada imagem da coleção é apresentada por um curto texto de comentário de um ou outro dos autores e a obra é introduzida por estudos, “Mimesis / Poiesis”, de Valente Alves e “Anatomie à l’usage de artistes”, de Lobo Antunes. Valente Alves tem a preocupação de relacionar a coleção de desenhos anatómicos, bem assim como da obra anatómica de Henrique de Vilhena, com as vanguardas artísticas internacionais contemporâneas de ambos, nomeadamente por intermédio das expressões delas na arte e nos artistas portugueses da época.
Sugere, no entanto, e por um lado, um nexo entre “uma postura distante, um conservadorismo prudente relativamente às modernas correntes artísticas” (p. 14) de Vilhena, e o seu olhar “pré- cezanneano, amarrado ao naturalismo” (o que não deixa de fazer lembrar semelhante postura no seu contemporâneo Egas Moniz, vanguardista em ciência, mas conservador no gosto estético pela pintura portuguesa); por outro lado, e já quanto aos desenhos da coleção deste álbum, Valente Alves não deixa de sublinhar que
“foram realizados numa época marcada pela explosão modernista, pela escalada tecnológica na medicina, por grandes transformações políticas e sociais. Mas nada disso parece transparecer destes trabalhos escolares, quase todos eles imersos numa beleza incerta, numa quietude melancólica difícil de definir. Libertos das pastas e dos armários onde estiveram agrilhoados durante décadas e décadas, estes desenhos parecem agora percorridos por uma ambiguidade que transforma o seu sentido original, a mimesis, vontade de imitar, em poiesis, inscrição poética, sopro de criatividade. Por isso, eles são tão classicamente actuais” (p. 15).
Lobo Antunes, mais informativo e menos complacente para com a figura de Henrique de Vilhena, situa sumariamente a sua prática pedagógica no contexto internacional do ensino da anatomia artística, embora se demore sobretudo na história desta, muito mais do que propriamente no enquadramento da obra de Vilhena nela. Esclarece ainda que Vilhena utilizava um duplo critério na avaliação dos seus estudantes, de resto inteiramente compreensível, benevolente para com os estudantes de Belas-Artes, implacável relativamente aos futuros médicos, atendendo às suas responsabilidades profissionais que viriam a ter para com os doentes. Este facto pode explicar a riqueza criativa dos desenhos anatómicos selecionados para este livro, de entre um espólio que ultrapassará os dois milhares, e que em muito se distinguem da incomparavelmente mais rigorosa uniformidade das ilustrações anatómicas publicadas nas edições do Arquivo de Anatomia e Antropologia para uso da comunidade médica.
Ambos os autores recorrem a uma bibliografia que deliberadamente se apresenta como selecionada, porventura a justificar a sobriedade imposta a temas que apelam a maior aprofundamento. E, sobretudo – o que já tem outro peso – nenhum se abalança a abordar uma questão que se vai tornando insistente ao longo do desenvolvimento dos seus próprios textos e que perpassa todo o livro, a saber, a indagação das relações entre a coleção de anatomia artística reunida por Vilhena e a sua própria obra enquanto anatomista, no que se encontra implícita a relação entre a sua ciência e o seu interesse pela arte, mas não é por isso que Anatomia. Arte & Ciência deixa de cumprir o seu propósito essencial.
António Fernando Cascais