Lima, Campos (ed. lit.)
- A GAFANHA,
nº 1,
Lisboa: [s.n.], 1909 (Vila Nova de Famalicäo: -- Typ. Minerva).
16 p.; 20,5 cm - Brochado.
Capas com ligeira acidez; muito esporádicas e ténues manchas de acidez no interior, miolo limpo.
"A Gafanha, meus caros senhores, não é senão esta boa terra de mesquinharias e de toleimas, a fingir de nação da Europa e que nem ao menos por decoro anda de tanga. A Gafanha é a ‘piolheira’, onde só é gente o sr. Burnay. A Gafanha são os padres do ‘Portugal’, é a intentona, é a juventude monárquica, é a barriga do sr. Alpoim, a chefia do sr. Vilhena, a lei de 13 de Fevereiro, a beleza do sr. D. Manuel, o ‘Vasco da Gama’, o discurso da coroa, a chalaça do sr. Ferreira do Amaral e os adiantamentos. A Gafanha é esta terra de cegos, onde não havendo ao menos quem tenha um olho para ser rei, por esse facto se pensa fazer a República ..." [in A Gafanha, nº1]
Bom exemplar.
Raríssima
1ª edição
€25.00
Iva e portes incluídos.
A GAFANHA – Terá surpreendido Lisboa num dia incerto do ano de 1909. Provavelmente em Março, mas nada na publicação o assegura. Também não é fácil descortinar o ritmo de edição que prosseguiu. Mas para João Campos Lima, o dinamizador e a “alma” deste periódico de orientação libertária, essas não eram questões relevantes. O seu propósito era sim divulgar os princípios doutrinários que perfilhava, ainda que os soubesse de improvável, senão mesmo impossível, aplicação no presente e até num futuro próximo.
De facto, Campos Lima parece consciente de que o caminho a percorrer até à sociedade livre e igualitária que idealiza será longo, na medida em que pressupunha uma «transformação psycologica» geral, sobretudo do povo trabalhador. Mas isso não o desalenta. Quanto muito explica a ironia, por vezes sombreada de amargor, que dá cor à publicação. A começar no título, que se vestiu com um vocábulo que evoca os locais ermos para onde eram enviados os que padeciam de uma enfermidade de natureza epidémica, como a lepra ou a sarna, designadas “gafa”. Campos Lima justifica assim a sua escolha: «A Gafanha, meus caros senhores, não é senão esta boa terra de mesquinharias e de toleimas, a fingir de nação da Europa e que nem ao menos por decoro anda de tanga. A Gafanha é a «piolheira», onde só é gente o sr. Burnay.» E é muito mais, mormente uma «terra de cegos, onde não havendo ao menos quem tenha um olho para ser rei, por esse facto se pensa em fazer a republica.». Por aqui se percebe o seu distanciamento em relação aos dois regimes políticos: Monarquia ou República – pouco diferença lhes reconhecia, já que resultariam, inevitavelmente, em sociedades organizadas em função da
propriedade e, consequentemente, não solidárias e não livres.
Esta perspectiva está presente na publicação desde os primeiros números e, provavelmente, manteve-se até ao seu terminus. Mas não o podemos garantir taxativamente, porque desconhecemos quando isso se verificou. Na investigação realizada, encontrámos apenas 8 números , todos publicados em 1909. A este propósito importa sublinhar a raridade deste tipo de periódico, facto que encontra explicação quer na sua reduzida tiragem, quer na feroz perseguição a que foram sujeitos. Recorde-se a lei de 13 de Fevereiro de 1896, à data vigente, que estabelecia o processo sumário e as penas aplicáveis a quem, por qualquer meio, defendesse ou incitasse «actos subversivos», particularizando e agravando os casos animados pelas «doutrinas de anarchismo». A imprensa, por exemplo, era proibida de «occupar-se de factos ou de attentados de anarchismo», incluindo na sua fase investigatória ou processual. Em caso de infracção, a edição em causa sujeitava-se a ser apreendida, prevendo-se também a suspensão do periódico e a responsabilização criminal do autor do artigo, do editor do título e da própria tipografia onde era impresso. Neste quadro legal, não é pois de estranhar nem o curto tempo de vida destas publicações, nem o seu fim abrupto. Mas dele se depreende também o dinamismo que os movimentos libertários conheceram na época e o interesse que suscitaram, quer entre a intelectualidade, quer entre a
população trabalhadora, sobretudo, o operariado, que principiava a organizarse, a tomar consciência da sua força e a exigir a resolução da “questão social”.(....) - Rita Pereira, A Gafanha, Hemeroteca Municipal de Lisboa, Maio de 2010.
Nasceu nos anos distantes de 1877 na cidade do Porto João Evangelista de Campos Lima, ou Campos Lima como assinava. Ainda criança, foi levado para Barcelos e depois para Braga, onde concluiu o curso liceal. Bem jovem, fora tocado pelas injustiças sociais e percebeu a desigualdade e aos 17 anos, já em Coimbra, entra num comício de trabalhadores no bairro dos Olivais, discursando ao lado dos precursores do movimento operário em Portugal, Ernesto da Silva e Azedo Gneco. Aos 20 anos matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, de onde foi expulso em 1907, no mesmo ano em que se formara advo-gado, o que o impediu de doutorar-se. A sua expulsão decorreu da sua parti-cipação na greve académica naquele ano, contra o ditador João Franco. Um ano antes, 1906, visitando Paris, ali travou conhecimento com anarquistas como Carlos Malato, o escritor romeno Janvion, Paul Pigassou, Jean Grave. Mas o que mais o entusiasmou foi a Comuna escolar La Ruche, de Sebastião Faure. De regresso a Portugal, tentou em colaboração com Tomás da Fonseca, Lopes de Oliveira e outros. fundar uma Escola Livre de Ensino Integral. Em 1908 principiou a advogar, mas nunca aceitou uma causa onde tivesse de acusar. Só uma vez acusou um agente de polícia que assassinara um operário. Como escritor anarquista foi dos mais produtivos e dos mais modestos, e como advogado defendeu heroicamente os trabalhadores e os anarquistas presos por delitos de opinião. Para melhor semear as suas ideias, divulgar os seus pensamentos o anarquista e advogado dos trabalhadores perseguidos fundou e dirigiu a Editora Spartacus, que publicou obras de real valor, como A História do Movimento Maknovista de Pedro Archinoff em 1925. Professor em escolas industriais e, interino, num Liceu, continuou a sua vida de propagandista, sempre interessado nos problemas sociais, e combateu alguns governos republicanos, com a mesma independência com que combatera os monárquicos, embora se entendesse com os democratas, na oposição e, sobretudo, quando via a República ameaçada. Foi amigo dos presidentes Manuel de Arriaga, António José de Almeida, Bernardino Machado e Teixeira Gomes; mas nunca solicitou empregos, benesses, mercês honoríficas, recusando ser deputado, governador civil e até ministro da Justiça, depois do movimento de 19 de Outubro. Apenas consentiu em fazer parte de várias comissões de estudos, como a encarregada da reforma da lei do inquilinato e dos organizadores do Congresso Internacional do Livre Pensamento, em cujos trabalhos tomou parte. A sua actividade jornalística foi grande, colaborando em muitos jornais e revistas do país e do estrangeiro. Fundou e dirigiu a revista Cultura e foi director dos diários Boa Nova e Imprensa de Lisboa, o único jornal diário que se publicava no período da greve dos jornalistas. Trabalhou, como redactor nos jornais O Século, O Mundo, A Batalha, Pátria e Diário de Notícias e foi articulista primoroso, versando os mais diversos problemas nacionais e internacionais.
Como escritor, em verso e prosa, é vasta e variada a sua obra, que passamos a enumerar: Retalhos do Coração, A Monja, Os Reis Magos, O Rei, O Regicida, Notas de um Alucinado, O Amor e a Vida, Gente Devota, A Quebra, Mulher Perdida, O Romance do Amor, Os meus dez dias em Paris, A Questão da Universidade (depoimentos de um estudante expulso); O Reino da Traulitdnia (25 dias de reacção monárquica), A Ceia dos Pobres, Ar Livre, O Nosso Amor, Um Herói, A Monja e os Católicos, Alma Rubra, A Gafanha, Nova Crença, Da Responsabilidade, A Questão Social, O Movimento Operário em Portugal, Carácter Jurídico dos Funcionários Públicos, O Estado e a Evolução do Direito, A Revolução em Portugal, A Teoria Libertária ou Anarquismo e Gramática Internacional. Deixou inéditos, os livros Musa Antiga, O Crime, Serros da Gleba e Camaradas. Campos Lima faleceu a 15 de Março de 1956 com 78 anos de idade na rua Actor Taborda, 27, em Lisboa, sem ver o fim da ditadura fascista de Salazar. Ao seu enterro compareceram figuras da mais alta expressão intelectual como Julião Quintinha, Artur Inez, Manuel Alpedrinha, João Pedro dos Santos, que representava os Srs. drs. José Domingues dos Santos, antigo Presidente do Conselho, e Nuno Simões, antigo ministro; drs. Mário Azevedo Gomes, Constantino Mendes, Abílio Mendes, Vitorino Nemésio, Vasco B. Queirós, Matos Cid, Alexandre Barbas, João de Barros, Luís Carvalho e Oliveira, Ramón La Féria, Paradela de Oliveira, Jacinto Simões, Hernâni Cidade, Mário Ferreira, António José Saraiva, Correia da Costa e Arlindo Vicente; jornalistas: Pinto Quartim e esposa, Cristiano Lima, Artur Fernandes, César dos Santos, César Moutinho, Manuel Nunes, Eduardo Frias; pintores Abel Manta e Guilherme Filipe; escritores Ferreira de Castro, Assis Esperança, Tomás da Fonseca, Alexandre Vieira, comandante Melo Rodrigues, Artur Maldonado de Freitas, dr. José António Cardoso Viana, José de Brito, Joaquim Cardoso, Quintino Barros, Jaime Rebelo, Raúl Martins, Mário Maurício, Alberto Moor, Manuel James, Teófilo Farinha, dr. Armindo Rodrigues, Augusto da Silva Nobre, José Matias Campos, Joaquim Monteiro, Eduardo Andrade da Silva, José Lage, Benjamim Lilaia e Porfírio Cartaxo Abrantes. A Sociedade A Voz do Operário estava representada por muitos dos seus associados, entre os quais o presidente da sua assembleia geral, sr. José Antunes. - Paulo Guimarães; Sérgio Duarte (João Evangelista Campos Lima | Arquivo Histórico-Social / Projecto MOSCA)
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