SE NÃO PUDER DANÇAR ESTA NÃO É A MINHA REVOLUÇÃO: aspectos da vida de Emma Goldman - Clara Queiroz


Queiroz, Clara 
- SE NÃO PUDER DANÇAR ESTA 
NÃO É A MINHA REVOLUÇÃO: 
aspectos da vida de Emma Goldman
Coleção Peninsulares nº 89, 
Lisboa: Assírio & Alvim, 2008.
287, [1] p. ; il.; 21 cm - Brochado.
EXCERTOS
«Emma Goldman é um mulher pequena, um pouco entroncada, com cabelo ondeado bem arranjado, um olho azul claro, uma boca sensível ainda que não de linhas clássicas. Não é bonita, mas quando a sua face se ilumina com o brilho e o colorido do seu entusiasmo interior é extraordinariamente atraente. Tem gestos delicados, acessível e sem arrogância, livre sem um traço de grosseria e o seu riso é francamente sedutor. No que respeita à conversação é um deleite. A sua informação é vasta, a sua experiência abrangente, a sua leitura, em pelo menos três línguas, não tem praticamente limites. Ela tem perspicácia e humor também e uma sinceridade convincente. De que fala? De arte, literatura, ciência, economia, viagens, filosofia, de homens e de mulheres. Pintura, poesia, dramaturgia, personalidades - o melhor assunto para conversa e tudo do ponto de vista de alguém que olha em frente para a revolução. Ela tem a percepção do interlocutor e o dom da expressão sucinta. É simples e não violenta. É afirmativa sem truculência. É gentil e até, por vezes, terna. Toda a sua personalidade vibra com um fervor contagioso. É uma mulher que acredita na sua causa e sente-a com uma intensidade concentrada. É o padrão com que mede todos os valores. Não vê no mundo mais nada que não seja o que deve ser remodelado em qualquer forma próxima do seu desejo profundo. E o que é esse desejo? Liberdade - liberdade absoluta, incondicional, não agressiva. Isso é Anarquia... [...]
Esta pequena mulher nega a lei, mas não a invoca. Vive com outro homem à margem do casamento legal; mas não exige que a considerem respeitável. Vive livre e está disposta a pagar o preço da deturpação, da injúria, da pobreza, da perseguição. E, entre tudo isto, é serena. Está segura da sua sanidade num mundo louco.»
Exemplar novo.
1ª edição
€19.00
Iva e portes incluídos.

Assunto: Goldman, Emma, 1869-1940


Até à publicação de Se não puder dançar esta não é a minha revolução, da autoria da bióloga Clara Queiroz, o panorama editorial português – tirando uma entrada no Dicionário de Mulheres Rebeldes, organizado por Ana Barradas – pecava por não contar com qualquer estudo publicado sobre a vida ou a obra de Emma Goldman, uma das figuras de proa do movimento anarquista do século XX. Num contexto assim, a mera aparição deste livro deve ser desde logo saudada, não só por começar a preencher uma lacuna, mas principalmente pelas possibilidades que a apreciável base documental utilizada pela autora oferece a quem, no futuro, pretenda desenvolver e aprofundar questionamentos sobre a obra teórica e a actividade política de Emma Goldman. Clara Queiroz não pretende, com o seu livro, proceder a uma análise teórica de fundo do pensamento e da acção de Goldman, mas sobretudo, como o subtítulo indica, apresentar, em clave de sentida homenagem, «aspectos da vida» da anarquista nascida na Rússia em 1869. Precisamente esse fio condutor que estrutura a obra define-lhe, simultaneamente, as virtudes e os limites.
O grande mérito de Clara Queiroz é o de, ao longo de Se não puder dançar esta não é a minha revolução, ir desenhando o percurso biográfico de Emma Goldman, não através de um centramento abstracto nos caracteres da sua personalidade, desligada de tudo o resto, mas sobretudo a partir de um consciente e insistente esforço de caracterização dos ambientes sociais e políticos que marcaram os espaços e o tempo que a Goldman coube viver. É sempre sob um enquadramento deste tipo, bem recheado dos mais variados elementos societários, que a figura de Emma Goldman, aos nossos olhos, se vai adensando e enriquecendo, e as suas posições e sentimentos tornando mais vivos e tangíveis. É também esta metodologia de Clara Queiroz que, por via da vida intensa e preenchida de Goldman, nos transporta a momentos fundamentais da história do movimento operário, como são os casos do 1.º de Maio de Chicago de 1886 e a repressão que se seguiu; da revolução soviética (em 1920, Goldman, em representação do movimento anarquista, seria mesmo recebida por Lenine); e da guerra civil espanhola. E é ainda este viso de Clara Queiroz que nos permite dar conta, por exemplo, da feroz e intensa repressão contra trabalhadores, sindicalistas e reds, instalada nos Estados Unidos entre 1918 e 1920, com deportações e prisões em massa, no que ficou conhecido como red scare. Ou ainda da estrutura tentacular do FBI liderado por Hoover, que se tornou uma impressionante organização de espionagem e repressão políticas contra os meios da esquerda americana.
Mas se a riqueza informativa e documental que pauta o livro de Clara Queiroz é decisiva para uma compreensão dos contextos históricos da vida de Emma Goldman, já a penetração pensante (que comporta, no mesmo movimento, os momentos da apreensão e da crítica) nos seus posicionamentos políticos e ideológicos é um pouco descurada, quedando-se a autora, em consequência de uma óbvia identificação com a personalidade de Goldman, por apresentá-los, na superfície dos enunciados por que se expressam, como evidentes e justos por si mesmos. E é dessa forma que acaba por ver-se consagrada, na perspectivação dos problemas sociais, políticos e económicos que atravessam Se não puder dançar…, uma visão e uma interpretação dos fenómenos históricos, enraizadas em Emma Goldman e assumidas por Clara Queiroz, ritmadas essencialmente por uma confrontação entre parelhas abstractas de contrários – no caso vertente, entre concepções autoritárias e não-autoritárias, centralizadoras e descentralizadoras, etc. É toda uma moldura (não apenas política, mas também ontológica) que prepara o terreno para um entendimento da revolução como uma realização de ideais na empiricidade dos fenómenos, como a implementação de um «dever-ser» axiológico no terreno mundano do «ser» (note-se que é porventura esse o sentido mais profundo da afirmação de Goldman que dá azo ao título do livro; e por isso, também, Clara Queiroz refere algumas vezes que as desilusões políticas de Goldman provinham do facto de as coisas não se terem passado como ela «idealizava»).
Descontando toda a boa vontade que preside a este tipo de representações do que seja a revolução, talvez ela não se caracterize, de facto, nesses termos. Talvez seja necessário surpreender no próprio corpo das realidades contraditórias em devir o leque de possíveis a trabalhar, que nele entronca e que para diante de si projecta. Talvez, finalmente, ao contrário do que muito neo-romantismo pós-amodernado, de figurino mais ou menos sofisticado, pensa e proclama, a realidade seja afinal mil vezes mais rica, mil vezes mais «romântica», do que o mais «romântico» dos sonhos. Problemática esta que Se não puder dançar…, intencionalmente ou não, acaba por propor como objecto fundamental de reflexão e detenimento. É outro dos seus méritos.
Por João Vasco Fagundes (LE MONDE DIPLOMATIQUE | EDIÇÃO PORTUGUESA)

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