O LEITOR HEDONISTA: sobre o romance português contemporâneo e outros textos - Rui de Azevedo Teixeira
Teixeira, Rui de Azevedo;
Fonseca, Maria Edite Alexandre Gordalina da (revisor);
Dâmaso, Manuela (revisor);
Marques, Isabel (revisor);
Gordalina, Edite (revisor)
- O LEITOR HEDONISTA:
sobre o romance português contemporâneo e outros textos,
Lisboa: Hugin, 2003.
160, [1] p. ; 23 cm - Brochado.
Exemplar novo.
1ª edição
€15.37
Iva e portes íncluidos.
Rosa Maria Sequeira (Lisboa)
Rui de Azevedo Teixeira
O leitor hedonista
Lisboa, Hugin Editores, 2003
(ensaio)
Esta recensão foi publicada em Lusorama 59-60, pp. 208-210
A actividade ensaística de R.A.T. tem incidido, de um modo geral, no romance português contemporâneo e, mais especificamente, no tema da guerra e da literatura, ao qual já dedicou uma vasta obra. Não admira, pois, que este seu trabalho se desenvolva em torno de romances cuja acção decorre, muitas vezes, em espaços das ex-colónias ou que reflectem aspectos da Guerra Colonial. Estão neste caso, por exemplo, As Lágrimas de Aquiles de José Manuel Saraiva ou A Pele dos Séculos de Joana Ruas. Outras vezes, os ensaios estão relacionados com o percurso biográfico do autor que, note-se parenteticamente, viveu durante algum tempo na Alemanha.
Dois blocos de ensaios definem o volume, o primeiro de uma trilogia que promete “uma perspectiva de conjunto da nossa produção novelística” (pág.5).
Para já, na I Parte, o autor segue as linhas do romance contemporâneo a partir de nomes de valor desigual como António Lobo Antunes, Clara Pinto Correia, Domingos Lobo, Helder Macedo, Helia Correia e Joana Ruas entre outros. Ora analisa livros de recorte clássico, ora obras que não são de classificação fácil, ou “factions”, como Glória de Vasco Pulido Valente, da qual diz: “Glória é um meio exemplo dessa prosa mais profícua porque é um trabalho mais colado à realidade real do que os fracassados ensaios de romances ou de que os guiões, essa forma secundária de literatura. E Glória é só um meio exemplo porque, parcialmente desobedecendo a Lucena, Pulido Valente mistura magistralmente carga literária à matéria histórica” (pág. 69). São notas de leitura muito diversas no que implicam de assistematicidade e inconclusividade, mas que não deixam de obedecer a uma escolha criteriosa e indicar aproximações para futuras vias de investigação como faz com as obras de George Simenon e Clara Pinto Correia. É assim que o romance As Lágrimas e o Vento de Manuel dos Santos Lima é comparado com Autópsia de um Mar de Ruínas e Jornada de África, respectivamente de João de Melo e Manuel Alegre:
“Destes três romances cosidos em ponto e contraponto, o de Manuel dos Santos Lima é não só o mais credível, o mais verosímil (o autor esteve efectivamente nos dois lados da barricada), como a sua estrutura contraponística é a mais equilibrada - a de Alegre é irregular, com um universo muito mais curto que o português, e o de Melo é excessivamente regular, acabando até por cair no maniqueísmo mais rudimentar.
Em As Lágrimas e o Vento, a estrutura dupla não conduz a uma semântica ideológica fechada, a um dualismo maniqueu. Sem nunca pôr em causa o essencial - a justa raison de guerre dos colonizados -, o romance de Santos Lima tem dúvidas, problematiza, não se coibindo de distribuir um módico de bondade culpada ao lado português e uma porção de Mal ao lado angolano” (pp. 96-97).
Frequentemente, R.A.T lê os textos dos autores como intertextos onde se descortinam outros textos culturais e sociais e neles pesquisa acuradamente o valor ideológico sem desdenhar a expressão da subjectividade e os contornos da narrativa.
Atento aos enredos e histórias dos romances, ele não deixa de nos revelar também uma leitura mais profunda, atenta às forças que, subjectivamente, motivam a escrita.
Exemplo disto é o deleite com que segue os passos da escrita e da linguagem, procurando chegar ao estilo que define o escritor. Na busca do essencial que empreende em relação a cada obra, R.A.T. não se coibe de citar livros que o tocaram fisicamente, na expressão que utiliza para o de Leão Penedo, A Raiz e o Vento. Diz ele sobre Percursos, de Wanda Ramos, que obteve o prémio da A.P.E. de ficção de 1980:
“Memória, tempo e rio são as palavras chave para a inteligência de Percursos e é nelas que reside o segredo do equilíbrio estrutural do romance, invisível na aparente caoticidade / fragmentação dos seus curtos extractos. (...) Deste modo, a memória, deteriorada em reminiscências, de um tempo de formação em que os rios do Leste de Angola são uma presença totémica, resolve-se estruturalmente em Percursos numa composição pontilhística (os pontos / movimentos / fragmentos) que, activada pela leitura, flui (o movimento, a linha), num percurso quase linear (apenas seis fragmentos desordenados sequencialmente: um rio nunca é totalmente recto) de um rio, de uma vida” (pág. 76).
A II Parte é constituída por reflexões metateóricas, nas quais as referências à bibliografia alemã são comuns e desempenham um papel fundamental. Neste contexto, é de assinalar a arguta análise do caso Reich-Ranicki, um “educador literário das massas”, como diz o autor (pág. 148), mas que, figura de proa do programa da televisão alemã “Das literarische Quartett” e, afinal, porta-voz do gosto mediano, era apelidado de “Papa da literatura”. Nesta parte enunciam-se problemas genéricos de diferentes amplitudes.
As duas epígrafes que abrem o livro representam o espírito da obra. Uma da autoria de Vitorino Nemésio, pelo gosto de um discurso “fluente e natural como linfa que margina outra linfa”, outra de George Steiner, pela ética crítica em que “a crítica estética vale apenas, ou sobretudo, quando resulta de uma mestria comparável em termos de forma responsável à do seu objecto”. De facto, numa escrita clara mas não desapaixonada, R.A.T. pratica com esmero o ensaio, a exposição de ideias em busca da reconstrução na leitura, examinando com maturidade as grandes linhas do romance português contemporâneo.
Respeitando o modelo de crítico recenseador, inicialmente proposto, o conjunto de ensaios de R.A.T. tem ainda o interesse de descobrir as melhores qualidades dos textos, convocando o leitor a reflectir sobre o fenómeno literário. Porque se trata de um valioso contributo para a compreensão da literatura portuguesa actual, ficamos a aguardar os restantes dois volumes.
MMSARD