Fonseca, Rubem;
Martínez, Tomás Eloy (pref.)
- 64 CONTOS DE RUBEM FONSECA,
São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
799 p.; 23 cm - Brochado.
Após as antologias de Isaac Bashevis Singer e F. Scott Fitzgerald, o novo lançamento da coleção traz 64 contos selecionados pelo autor e com introdução de Tomás Eloy Martínez. Como bem disse Gabriel García Márquez, "Rubem Fonseca vale a viagem".
Excelente exemplar.
1ª edição
€20.00 Vendido
Iva e portes incluídos.
64 contos de Rubem Fonseca - Wagner Martins Madeira
Um Rubem Fonseca mais acessível do que nunca está na praça. Num alentado volume (Fonseca, 2004, 799 p.), é disponibilizada pela Cia das Letras a maior antologia de contos da obra, selecionada pelo próprio autor. O título é sugestivo: 64 contos de RubemFonseca, a revelar possibilidades simbólicas do número, presentes em várias culturasancestrais. O I Ching, livro místico chinês, compõe-se de 64 hexagramas, que representama trama do mundo manifestado, tecido de sombra e luz, em que se alternam o Yin e o Yang. Segundo o dicionário de símbolos (Chevalier, 1994, p.826), o quadrado de oito indica ao mesmo tempo “plenitude” e “campo fechado de um combate” (esta última uma palavra que resume admiravelmente as situações ficcionais da prosa de Fonseca). Expressão de uma totalidade perfeita, o número simboliza, em síntese, “realização terrestre”. Não é para menos, o autor é consagrado, ganhou os principais prêmios literários nacionais erecentemente foi galardoado com os insignes prêmios internacionais “Juan Rulfo” e“Camões”. Há cerca de quarenta anos conquista mais e mais leitores, no Brasil e pelo mundo afora. Completa 80 anos em 2005 e a efeméride redonda suscita inevitavelmente avaliações retrospectivas. A presente edição da obra vem, pois, em momento oportuno, possibilitando ao leitor de uma só feita o contato com o que de melhor Fonseca produziu como contista.A se lamentar o critério editorial de não informar aos leitores sobre as circunstânciasda publicação original de cada conto. É compreensível uma possível alegação de que o propósito seja valorizar o texto de ficção, sem truncá-lo com notas explicativas, mas o leitor por sua vez tem o direito de saber o percurso histórico que fez o texto, até para situarmodismos de linguagem, gírias, etc., quando não as circunstâncias políticas que, nas suasfranjas, revelam a evolução da fatura estética do escritor. A título de exemplo, Corações solitários, conto pertencente ao clássico volume Feliz ano novo, publicado originalmente em 1975, contém várias alusões metafóricas de caráter político ao período brasileiro assolado pela ditadura militar, num registro cômico diferenciado, se cotejado com o conjunto da obra do autor, muito distinto das razões de natureza pornográfica alegadas pelos órgãos censores que privaram o livro de circulação por mais de doze anos. Uma sucinta nota de rodapé a cada conto, esclarecendo as condições originais de publicação, prestaria, portanto, valioso serviço interpretativo aos leitores, sem prejuízo da fruição do texto literário que viria a seguir.
De resto, a edição é bem cuidada quanto à definição de texto, não contendo problemas de revisão. A apresentação gráfica da capa é inventiva ao retomar simbolismosdo número 64, no sentido de sugerir, através de duas cores contrastantes, uma espécie detabuleiro, em que o mundo ficcional do contista se encontra manifestado. O detalhe dos planos – lateral, superior e inferior – em azul, assim como as letras da capa, revelam um bom acabamento e reforçam ainda uma vez mais o simbolismo da trama ficcional, em que a cor azul aventa a idéia de que no livro o “real se transforma em imaginário”.
Abre o volume uma introdução – “A sinfonia do mal” – do propalado escritor argentino Tomás Eloy Martinez. O titulo antitético traduz ao mesmo tempo a admiração de um companheiro de mesma geração e o estupor pela violência da matéria ficcional, em que surdem “os tambores do inferno”, a descrever um “mundo em que Deus é desnecessário” e que “se mata e destrói por inércia”. O tom laudatório do ensaio o leva a incorrer em lugar comum, quando pontua o estilo “cinematográfico” de Fonseca, e não o exime de inadvertências, ao divisar no contista influências machadianas. Embora o ensaísta tenha atenuado o seu julgamento com a expressão modalizadora “às vezes”, a comparação deixa entrever o desconhecimento da obra de nosso maior escritor. O acerto fica por conta dafiliação estética do conto policial de Fonseca, mais próxima de Hammett do que de Chandler. Martinez, por fim, se impressiona com o “assustador efeito de realidade” da obra e as conseqüências para o leitor, que “não consegue se desvencilhar, como acontece com as moscas capturadas pela voracidade da aranha”. A brevidade e a inflexão do ensaio confirmam mais uma vez a proposta da edição, no sentido de valorizar o texto ficcional de Rubem Fonseca, autor reconhecidamente avesso ao trabalho da crítica literária, vide Diário de um fescenino (Cia das Letras, 2003), em que destila impropérios ao leitor e ao crítico desavisados, acometidos ambos da “síndrome de Zuckerman”, por confundirem autor com narrador. O tempo, as boas vendagens e a fama se encarregaram de sustentar o paradoxo de Fonseca: a misantropia do cidadão escritor e o narcisismo dos seus narradores ficcionaissão objetos constantes de acalorados, embora não menos entediantes, debates.
Os 64 contos de Rubem Fonseca confirmam a tendência de rumos da literatura brasileira na segunda metade do século XX: as melhores soluções ficcionais seconcentraram na narrativa curta e não no romance. Notadamente no manejo do enredo policial, no qual é mestre, o escritor pôde expressar todo o seu poder de síntese e atração doleitor, mostrando-se um fiel discípulo de Poe, o mestre dos mestres. Contos como O caso de F. A, Relato de ocorrência e Anjos das marquises fazem o leitor perder o fôlego, pois a violência da trama encontra seu correspondente na primorosa elaboração formal. A eles se aplica o pioneiro e elucidativo julgamento crítico de Fábio Lucas, que divisava já no livro de estréia de Fonseca, Os prisioneiros, de 1963, ausência de concessões para a “ficção de vida interior”, para “narrativa de atmosfera”, práticas impregnadas de então, mas sim“dinamismo, ação, expressividade veloz, conflito de caracteres” (Lucas, 1976, p. 125), que se afigurou novidade estilística a enfunar de novos ares a ficção brasileira.
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64 contos de Rubem Fonseca é um livro de leitura obrigatória, pois generoso para oque se espera dele. Mesmo o leitor acostumado com o universo ficcional de Fonseca se seduz com descobertas como A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, conto pungente,ao mesmo tempo declaração de amor e mapeamento da miséria, prosa poética e tratadosociológico da cidade maravilhosa. Surpreende-se com a originalidade de Betsy, narrativa curta e engenhosa por sua condução, ilusória até próxima do desfecho. Delicia-se com a inventividade de Caderninho de nomes e seu desenlace hilário, que atesta como que um compromisso com narrativas bem humoradas, procedimento pouco lembrado pela crítica literária quando analisa a ficção de Rubem Fonseca. Inclusive a surrada temática da violência, se mostra, na seqüência de leitura, não um painel aberrante com o intuito de chocar o leitor, mas como, malgrado seja, atributo próprio da condição humana. Assim, o realismo do escritor descola-se do seu tempo e divisa o estatuto clássico, pois há de arrebatar muitas outras gerações de leitores, um tanto perplexas é verdade, não obstante ávidas por entendimento, pela via da obra de arte literária, dos (des)caminhos da humanidade.
MMSARD