SALAZAR E PÉTAIN: relações Luso-Francesas durante a II Guerra Mundial, 1940-44 - Helena Pinto Janeiro
Janeiro, Helena Pinto;
Ferreira, Medeiros (pref.)
- SALAZAR E PÉTAIN: r
elações Luso-Francesas durante a II Guerra Mundial, 1940-44, Colecção Cosmos História nº 22,
Lisboa: Cosmos, 1998.
272, [2] p., [8] p. il. : il. ; 23 cm - Brochado.
Bibliografia, p. 249-262
1ª edição
€16.00
Iva e portes incluídos.
ASSUNTOS: Salazarismo, 1932-1968 (Portugal)
RECENSÃO
Salazar e Pétain
Pedro Aires Oliveira
Assistente na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Salazar e Pétain – Relações luso-francesas durante a II Guerra Mundial (1940-1944)
Helena Pinto Janeiro, 1998, Edições Cosmos, Lisboa, 272 pp.
O livro que aqui se apresenta resulta de uma tese de mestrado apresentada pela autora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em 1995, sob a orientação de José Medeiros Ferreira.
A originalidade do tema escolhido merece ser desde já sublinhada: para além de ser um dos raros estudos que se debruçam sobre a problemática das relações luso-francesas neste século, Salazar e Pétain é também a primeira síntese onde se procede à análise criteriosa e sistemática das afinidades político-ideológicas entre a ditadura salazarista e o regime de Vichy. Razões mais do que suficientes, portanto, para que todos os estudiosos da política de neutralidade portuguesa durante a II Guerra Mundial e, de uma forma genérica, das relações externas do Estado Novo, se apressem a visitá-lo.
Adoptando uma perspectiva plural e multifacetada das relações internacionais, a autora não se fica pela análise dos contactos bilaterais entre o Estado Novo e Vichy, realizando uma importante incursão em temas como a propaganda e a opinião pública, os intercâmbios culturais, a influência da ideologia nas estratégias diplomáticas, etc. Ciente de que as relações luso-francesas no período em apreço não se esgotaram nas cumplicidades de Salazar com Vichy, a autora introduz-nos ainda nos bastidores dessa
autêntica comédia de enganos que foi a relação do governo português com as delegações semioficiosas de de Gaulle e Giraud em Lisboa, assim como no comportamento oscilante da comunidade francesa radicada em Portugal.
Para levar a cabo os seus intentos, Helena Janeiro recorreu a um corpo de fontes muito variado, no qual se destacam não apenas os acervos diplomáticos dos principais arquivos portugueses e franceses (Arquivo Oliveira Salazar, Arquivo do mne, Arquivo do Quai d’Orsay, Arquivos Nacionais de França), mas também uma abundante literatura de carácter memorialístico (diários, relatos de viagens, entrevistas, livros de reportagem) e os materiais de propaganda dos diferentes regimes e forças políticas (cartazes, folhetos, brochuras, etc.).
Na esteira do que alguns historiadores franceses (Marc Ferro, Pierre Milza, René Rémond, entre outros) haviam já sugerido, a sua hipótese de investigação inicial consistia em tentar perceber até que ponto Salazar teria ou não «apadrinhado» o regime de Pétain, servindo-lhe de modelo de chefia política e de ponto de apoio diplomático no contexto da guerra.
Aos olhos dos contemporâneos e da historiografia moderna, o parentesco entre o Estado Novo e Vichy nunca esteve em causa: ambos partilhavam a mesma matriz conservadora, nacionalista, católica, antiparlamentar, anticomunista e, no seu reaccionarismo passadista, ambos repudiavam a ideologia secular das Luzes e da Revolução Francesa, idealizando uma sociedade baseada no respeito das hierarquias naturais, na organização corporativa e no regresso aos valores rurais, familiares e patrióticos. O que se desconhecia era o modo como essas afinidades ideológicas se haviam repercutido no relacionamento bilateral, e em que medida a experiência portuguesa se teria plasmado na legislação e no figurino político vichysta.
Mas o que poderia Salazar lucrar com o apadrinhamento de Vichy? Em primeiro lugar, os dividendos de carácter simbólico: ao ver a sua doutrina e métodos de governo reconhecidos pela França, mesmo por uma França humilhada pela derrota e ocupação alemã, o ditador português não apenas invertia o ascendente cultural e político que aquela potência sempre gozara em relação a Portugal, como afirmava a pujança ideológica do regime a que presidia; por outro lado, a manutenção de boas relações com Vichy trazialhe importantes benefícios materiais, na medida em que a brecha no bloqueio aliado no Norte de África francês lhe facultava um acesso privilegiado aos fosfatos marroquinos – essenciais para a agricultura portuguesa e uma valiosa moeda de troca nos negócios de guerra; e, finalmente, do ponto de vista estratégico, Salazar contava com Vichy para a constituição de uma frente de países neutrais, susceptível de moderar os antagonismos ideológicos exacerbados pelo conflito e salvaguardar o futuro dos regimes «de ordem» no reordenamento político e económico do pós-guerra.
Estudado com curiosidade por diversos movimentos e organizações da direita autoritária francesa desde inícios da década de 30, o Estado Novo português exerceu um forte apelo sobre os principais dirigentes e ideólogos de Vichy. Conforme explica Helena Janeiro: «O modelo português é particularmente operacional pela aura de eficácia que o envolve e, simultaneamente, pela sua relativa inocuidade no seio dos regimes da família do fascismo europeu. Com uma imagem de autoritarismo firme mas temperado de boas intenções cristãs, distanciado dos apetites expansionistas e beligerantes do nazismo e do fascismo, tradicional aliado da Grã-Bretanha e fiel amigo da França, o público reconhecimento das afinidades ideológicas de Vichy ao Portugal salazarista era tão oportuno quão inofensivo» (220).
Para além do apelo ideológico, Pétain e a sua entourage estavam atentos a outro tipo de vantagens inerentes a um relacionamento mais íntimo com Portugal: a influência moderadora de Salazar junto de Franco, no sentido de lhe refrear as ambições expansionistas no Norte de África; a possibilidade de beneficiarem de um canal de comunicação com a Grã-Bretanha através de Lisboa; e, no caso do conflito se saldar por uma paz de compromisso, o apoio da diplomacia salazarista para o papel arbitral que também Pétain sonhava poder vir a desempenhar.
Graças a esta conjugação de factores, o período compreendido entre o Verão de 1940 e Novembro de 1942 revelou-se fértil em contactos de vária ordem entre os dois regimes: intercâmbios de jornalistas e de funcionários dos respectivos aparelhos de propaganda, excursões da Mocidade Portuguesa ao Protectorado Francês de Marrocos e participação da Jeunesse Française em actividades desportivas em Portugal, dinamização de exposições, conferências e visitas de estudo, celebração de acordos comerciais entre Portugal e as autoridades vichystas de Marrocos, etc.
No entanto, com avisada prudência, a autora não deixa de prevenir o leitor para as limitações do apadrinhamento de Vichy por Salazar, o qual sempre experimentou algum incómodo face aos constrangimentos que pendiam sobre o regime autoritário francês – desde as circunstâncias embaraçosas que haviam presidido à sua implantação à colaboração activa das autoridades vichystas no esforço de guerra do III Reich, ou até a intensa luta pelo poder que desde muito cedo se travou nos meandros da cidade termal francesa, lembrando os piores «vícios» do anterior regime parlamentar. Como tal, uma das principais conclusões de Helena Janeiro vai justamente no sentido de matizar a real
eficácia do entendimento político-ideológico entre os dois regimes: do projecto de constituição vichysta à legislação corporativa, das políticas de família e juventude às relações com a Igreja, das relações económicas às culturais, as múltiplas afinidades entre o Estado Novo e Vichy não superaram afinal o patamar da retórica: «É, de facto, na definição programática do figurino político ideológico que as relações Lisboa-Vichy são mais substanciais, mesmo se por via das circunstância anómalas que condicionam o nascimento e o desenrolar do regime de Pétain elas acabam por não ir tão longe quanto a sintonia política deixava adivinhar» (222).
Por outro lado, as limitações e ambiguidades da política de neutralidade portuguesa ajudam a explicar a relativa tolerância de Salazar face às actividades dos rivais e dissidentes de Vichy em Lisboa, nomeadamente a representação para-diplomática do general de Gaulle, cujo pequeno escritório na capital portuguesa funcionava na cozinha da embaixada inglesa, e a representação do general Giraud, o chefe civil e militar da África Francesa apoiado pelos norte-americanos logo após o desembarque aliado no Norte de África.
Aliás, uma parte substancial de Salazar e Pétain passa também pela narrativa das peripécias mais ou menos burlescas que envolveram essa triangulação diplomática, não deixando de ser curioso verificar a habilidade com que a diplomacia salazarista foi gerindo as expectativas de gaullistas e giraudistas quanto a um reconhecimento oficial português (a partir de finais de 1942, recorde-se, Vichy deixa de controlar Marrocos e os seus preciosos fosfatos e Salazar vê-se forçado a entabular relações com os giraudistas e, pouco depois, com o Comité Francês de Libertação Nacional, que unificou as duas tendências) – sem jamais equacionar a hipótese de um rompimento formal de relações com Vichy.
Um outro aspecto digno de nota na investigação desenvolvida por Helena Janeiro diz respeito ao lugar ocupado pela «questão judaica» nas relações bilaterais entre Lisboa e Vichy. Com efeito, na sequência da legislação das autoridades alemãs (1940) e do próprio governo de Vichy (1941) impondo a «nacionalização» das empresas e dos bens judeus e a nomeação compulsiva de comissários «arianos» para a respectiva administração, o mne não deixará de desencadear algumas diligências no sentido de obter a nomeação de portugueses de «raça limpa» para o lugar dos judeus de origem portuguesa vítimas desse confisco. Uma manobra que, somada aos contornos do caso de Aristides Sousa Mendes, vem desmentir de forma cabal a faceta alegadamente «humanitária» da política de neutralidade salazarista, e abrir perspectivas para uma investigação mais aprofundada acerca dos preconceitos anti-semitas da elite burocrática portuguesa. De qualquer forma, e tendo em vista o estado actual dos nossos conhecimentos, a autora talvez seja demasiado enfática nalgumas considerações que tece a este respeito. Assim, ao admitir que a documentação disponível não lhe permitiu apurar o resultado concreto da jogada interesseira de Salazar, não será algo extemporâneo concluir que o Estado Novo desenvolveu «[...] uma colaboração activa com o programa anti-semita de Vichy, participando na partilha dos lucros do saque perpetrado pela França de Vichy aos bens e empresas de judeus portugueses sediados naquele território» (97)?
É claro que «imprecisões» desta natureza estão longe de empalidecer os méritos de um ensaio estruturado de acordo com critérios de rigor e isenção, servido por uma prosa sóbria e elegante e, de resto, assaz ponderado nas suas conclusões finais.
Por fim, julgo que é de inteira justiça salientar o profissionalismo com que a Cosmos preparou mais esta sua edição. Com uma excelente concepção gráfica e um valioso prefácio de José Medeiros Ferreira, Salazar e Pétain apresenta ainda um sempre útil índice onomástico (infelizmente raro nas edições portuguesas) e, bem assim, um conjunto de fotografias de alguns dos principais protagonistas das relações luso-francesas no período histórico em apreço.
Prefácio de José Medeiros Ferreira
Agradecimentos e dedicatóriaTábua de abreviaturas e siglas
Introdução
Parte primeira
SALAZAR, PADRINHO DE VICHY? Da queda da França ao desembarque aliado no Norte de África
I. Salazar e Vichy: público reconhecimento, dúvidas privadas
l. Na iminência da ocupação: um retraio do êxodo
2. O armistício franco-alemão: humilhação, isolamento e exploração
3. A França ocupada: normalização à força
4. As contradições da «revolução nacional» de Vichy: da ideologia às práticas políticas. A interferência alemã
5. À conquista da opinião pública. Os alemães, Vichy e os franceses
II. A aposta ideológica; propagandas e realidades
l. Salazar, discípulo e mestre da França
2. Vichy, uma ditadura «à Salazar»
2.1. Ideário revolucionário e propagandas
2.1.1. O exemplo de Salazar na propaganda da França de Vichy
2.1.2. Propaganda de Vichy em Portugal
2.1.3. A propaganda salazarista e o trunfo «Vichy». A opinião pública portuguesa
2.2. O modelo virtual: projectos constitucionais e corporativos
2.2.1. O modelo constitucional
2.2.2. O modelo corporativo. O regresso à terra
2.3. Família, educação e juventude
2.4. O imaginário religioso da revolução nacional
2.5. O limiar do antisemitismo
III. A aposta estratégica: da neutralidade à paz de compromisso
l. Jogos políticos e relações comerciais
2. O «caso Rougier»
3. A postos para a arbitragem
IV Salazar e De Gaulle (I)
l. A delegação gauilista em Lisboa
1.1. O chapéu britânico
1.2. Representantes e sectores de actividade
1.3. Alta rotação de voluntários e quadros
1.4. Propaganda
1.4.1. Meios de propaganda
1.4.2. Destinatários
1.4.3. A crise da maioridade
2. Cortesia e interesses económicos: a um passo das relações oficiosas
3. A colónia francesa e o gauilismo
Parte segunda
SALAZAR E AS TRÊS FRANÇAS De Novembro de 1942 à libertação da França
I. Salazar e Giraud
l. O pétainismo sem Pétain
2. A legação de Vichy entre três fogos: Lavai, Giraud e Salazar
3. O trunfo dos fosfates
4. Voluntários, o circuito alternativo
5. Finalmente, a «dissidência». O volteface Monier
II. Salazar e De Gaulle (II)
l. Delegação gauilista, apogeu e fim
2. Salazar, entre Vichy e o Comité Francês de Libertação Nacional,
2.1. Gaullisras e giraudisras: a difícil unidade
2.2. O chumbo na asa da legação de Vichy
2.3. Salazar, De Gaulle e Pétain
III. Salazar e Pétain: os equívocos da paz de compromisso
l. O último fôlego de uma estratégia comum
2. Vichy, a cópia infeliz da Revolução Nacional salazarista
Conclusão
Notas
Fontes e bibliografia
Índice onomástico
